segunda-feira, 28 de novembro de 2011

Manual do Bode Torto III: O Bode Extrapolador

Este bode requer um pouco mais de desenvoltura para ser elegantemente representado, mas consegue obter resultados muito bons na luta contra o vigarismo intelectual. A sua máxima é: aumente, mas não invente. Procura aproveitar-se do fato de que o público é sensivelmente mais influenciável por floreios de retórica ou por chistes bem-humorados do que pela frieza cartesiana do encadeamento lógico dos argumentos: o Bode Extrapolador tem por objetivo expôr ao ridículo ao ou absurdo a argumentação do adversário, levando-a a extremos a que o próprio adversário não levaria.

Seu modus operandi é simples: é preciso tomar cada afirmação no seu sentido mais amplo possível, cada ressalva no sentido mais estreito possível, cada definição no seu sentido mais abrangente ou mais restritivo de acordo com a extrapolação que for mais conveniente no momento. Este bode exagera as afirmações do seu adversário, com o objetivo de torná-las insustentáveis. Ele, em suma, cria ou revela espantalhos para expôr ao descrédito o seu interlocutor.

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Exemplo do Bode Extrapolador, em uma discussão sobre criacionismo:

PICARETA: (...) e, do exposto, nós somos capazes de perceber que a Teoria da Evolução possui inúmeras falhas e lacunas, de modo que podemos ter a certeza de que cada um dos animais foi criado por Deus "segundo a sua espécie", não havendo nenhuma possibilidade de que um peixe vire um lagarto, depois um mamífero e, por fim, o homem.

BODE EXTRAPOLADOR: Do jeito que você fala, passa a impressão de que o Criacionismo não tem, ele próprio, enormes lacunas! E os fósseis, meu senhor, e os fósseis? Por acaso Deus colocou fósseis nas rochas só para sacanear os geólogos e os biólogos?

PICARETA: Os fósseis, sem dúvidas, são animais que existem ou já existiram. A extinção dos animais é um fato; dizer que animais foram extintos, contudo, não é a mesma coisa que dizer que eles tenham evoluído!

BODE EXTRAPOLADOR: Não, não! Por esta tua lógica, dizer que eles foram extintos é o mesmo que dizer que eles continuaram existindo!

PICARETA: ? Como assim? Claro que não. Dizer que eles foram extintos é dizer que eles deixaram de existir.

BODE EXTRAPOLADOR: E como é possível que outros animais, diferentes deles, existam ainda nos dias de hoje? Se eles foram extintos, deveriam ter deixado de existir e, hoje, não existiria mais nada. Ou Deus ficava dando "retoques" na sua criação e, após a experiência frustrada com os dinossauros, resolveu fazer um "puxadinho" com os mamíferos?

PICARETA: Não sei de onde você tirou isto. Todos os animais foram criados ao mesmo tempo. Alguns foram extintos e, outros, não. Não sei qual a dificuldade em entender isso.

BODE EXTRAPOLADOR: É. Só alguns animais foram extintos e - impressionante! - estes que foram extintos são EXATAMENTE os que formaram fósseis! Os que não formaram, continuaram existindo! Acho até que o senhor conseguiu descobrir, afinal, a causa da extinção deles: eles morreram porque foram repentinamente transformados em pedra e, com isso, se extinguiram!

PICARETA: Isto é mentira. Há fósseis de animais que ainda existem, como as libélulas, por exemplo.

BODE EXTRAPOLADOR: É, o problema é que os fósseis que temos das libélulas mostram-nas gigantescas! Para quem não acredita em evolução, o senhor está me saindo um grande piadista: então os animais não podem evoluir mas diminuir de tamanho eles podem? E por qual motivo nós não encontramos mini-tiranossauros-rex mordendo os nossos calcanhares por aí?

PICARETA: Eu não estou dizendo nada disso e o senhor está fugindo do tema. O fato é que o mais não pode vir do menos e, portanto, a teoria da evolução é um absurdo metafísico.

BODE EXTRAPOLADOR: O senhor não entende nem de evolução e nem de metafísica. Se o mais não pudesse vir do menos a galinha não poderia vir do ovo, ó Einstein!

PICARETA: Mas acontece que o ovo já é uma galinha em potência...

BODE EXTRAPOLADOR: Verborragia barata; se o senhor tivesse a honestidade de aplicar os mesmos conceitos, bastaria dizer que um conjunto de aminoácidos é já uma célula em potência, ou que um peixe é potencialmente um mamífero - aliás, estão aí as baleias no oceano para o exemplificar magistralmente. "Potência" não significa simplesmente "o que pode ser"? Pelo que estou vendo, então, o senhor está simplesmente dizendo que a Teoria da Evolução é falsa porque ela não é possível, e ela não é possível porque não tem possibilidade de ser verdadeira! Fantástico!

PICARETA: Em todo caso, Deus criou cada animal "segundo a sua espécie", porque as espécies de animais são muito bem separadas entre si.

BODE EXTRAPOLADOR: Pelo que o senhor está dizendo, então, Deus criou não somente os cachorros, mas especificamente os poodles, os rotweillers, os filas, os labradores, os dálmatas, os huskies siberianos, os bassets, os yorkshires, os pitbulls, os chihuahuas, os pinscher, os mastins, os pastores alemães, os beagles, os pequineses, os cocker spaniels e - claro - os vira-latas e os cérberos, e isto para ficar só nos cachorros, o que transformaria o Paraíso em um verdadeiro inferno e explicaria o porquê de Adão e Eva terem se esforçado tanto para serem expulsos de lá!

PICARETA: O senhor está fazendo graça. No final, o senhor sabe muito bem que o pensamento não pode vir da matéria.

BODE EXTRAPOLADOR: Sim, e sei também que a ciência não pode vir da estupidez. E nem por isso nós podemos dizer que um estúpido, ao final de contas, não possa estudar e se tornar um cientista. Ainda há esperança para você, meu caro amigo!

PICARETA: O senhor está confundindo a evolução do conhecimento de uma pessoa com a evolução das espécies!

BODE EXTRAPOLADOR: Eu não estou confundindo é nada, é o senhor que está dizendo que as coisas não podem evoluir quando, na verdade, até esta nossa conversa evolui, e o senhor já mudou de idéia e já aceita que o Jardim do Éden não podia ser ao mesmo tempo um canil bagunçado e o Paraíso Terrestre!

PICARETA: Uma coisa é a evolução dentro da espécie e outra é a evolução de uma espécie em outra!

BODE EXTRAPOLADOR: Claro. A primeira destas coisas é um fato observável e, a segunda, uma teoria bastante razoável, que justamente por isso é chamada de Teoria da Evolução. O que não é nada razoável é a tua teoria de que alguns animais não existem mais porque foram transformados subitamente em pedras, ou que alguns animais (como as libélulas) "involuem" ficando cada vez menores - talvez até desaparecer e, com isso, se extinguirem né?

PICARETA: Eu não disse nenhuma dessas coisas! Não disse!

BODE EXTRAPOLADOR: É claro que disse, meu senhor, volte e leia! Também o senhor diz ora uma coisa e ora outra, como quer que alguém lhe leve a sério?

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É este o espírito do Bode Extrapolador: pegar as afirmações e interpretá-las no sentido mais cômico e absurdo possível, tirar as conseqüências mais forçadas daquilo que o seu adversário diz. A técnica deste bode é simples e genial, porque através dela é possível desacreditar a posição do adversário sem que seja preciso apresentar absolutamente nada em favor da própria tese.

Note-se que, neste exemplo, não foi apresentado o menor argumento em favor da tese evolucionária. O Bode Extrapolador apenas reduziu ao ridículo as argumentações do picareta criacionista, tirando conseqüências cômicas delas e as expondo, assim, ao descrédito. Por meio desta técnica, a posição defendida pelo bode torna-se plausível não por ter argumentos a apresentar em seu favor, mas tão-somente por aparecer aos olhos do público como a única alternativa que restou após a ridicularização das posições contrárias.

Esta é a essência de um Bode Torto, convém repetir: não defender racionalmente uma posição (isto, como nós já dissemos, é necessário que alguém faça, mas não um Bode Torto), e sim neutralizar a imposição TROLL da posição oposta. Note-se que o Bode Extrapolador do exemplo acima sequer precisa entender alguma coisa da Teoria da Evolução para desmascarar o criacionista.

Algumas dicas para otimizar o Bode Extrapolador:

- A maior parte das argumentações têm ao mesmo tempo falhas verdadeiras e erros de interpretação. Extrapolar, no primeiro caso, é inclusive oferecer uma prova formal da falsidade da tese, por reductio ad absurdum. No segundo caso, extrapolar é criar um espantalho (que pode surgir inclusive da falta de precisão de quem propõe a tese). Um bom Bode Extrapolador combina estas duas coisas, e confunde-as, de modo a fazer parecer que os seus espantalhos são na verdade o contra-exemplo que desmente a tese apresentada.

- Espantalhos podem ser identificados e, se não forem bem escolhidos, podem levar o Bode Extrapolador ao descrédito. Nunca convém usar somente espantalhos criados. É preciso usar espantalhos descobertos, i.e., verdadeiras falhas lógicas na argumentação do adversário (reductios ad absurdums) para proteger o Bode Extrapolador. Em todo caso, nunca deve ser usado um espantalho muito grosseiro. Como foi dito acima, este tipo de Bode requer uma certa elegância que não se adquire a não ser pela prática ou até mesmo pela arte. Caso comece a dar errado, a sugestão é tirar o Bode Extrapolador de campo para dar lugar a outro soldado desta manada, como o Bode Conciliador.

Não devemos nunca esquecer que o público é o alvo. Diante de um picareta que está provocando o caos exatamente por seduzir o público, importa é reduzi-lo ao descrédito. Isto se consegue de maneira tão mais eficiente quanto mais espirituoso for o Bode Extrapolador. E, uma vez ridicularizado, o vigarista vai ter muito trabalho para voltar a adquirir o prestígio que detinha antes. Uma vez que os espinhos e as ervas daninhas sejam devastadas pelo exército dos Bodes Tortos, o campo estará apto a ser cultivado novamente.

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