terça-feira, 22 de novembro de 2011

Manual do Bode Torto II: O Bode Acusador

Este bode também é facílimo de ser representado, e tem por máxima: afirme gratuitamente. Possui um enorme potencial de irritar o adversário, mas usualmente é melhor empregado se for combinado com outros bodes da manada anti-picaretagem (como por exemplo o Bode Extrapolador, o Bode Apelidador ou o Bode das Justificativas Estapafúrdias). A sua filosofia é bastante simples, porque se baseia em eximir-se de apresentar os argumentos das suas afirmativas. Basta acusar, acusar e acusar. Ora, diante da insistência na acusação (que fica ainda mais interessante se empregar técnicas de programação neurolingüística e variar a forma como ela é apresentada) só existem duas opções para o picareta que se encontra diante do Bode Acusador: ou ele responde (e demanda tempo e energia nisto, o que é nosso objetivo) ou não responde e assume o risco da acusação "pegar" (o que faz com que ele perca a credibilidade). Em qualquer um dos casos, nós atingimos o nosso intento e saímos vitoriosos.

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Exemplo de emprego do Bode Acusador, em uma discussão sobre vegetarianismo:

PICARETA: ... e por conta disso é um absurdo que as pessoas continuem matando seres vivos para se alimentar deles, espalhando a dor pelo mundo de maneira assim desnecessária, quando poderiam perfeitamente se nutrir de uma maneira mais harmoniosa por meio de uma saudável alimentação macrobiótica.

BODE ACUSADOR: Grande besteira, é claro que o senhor ia falar isso. Aposto que o senhor é ligado ao George Ohsawa e está advogando em causa própria.

PICARETA: ?? Como assim? De onde você tirou que eu sou ligado ao Ohsawa?

BODE ACUSADOR: E por acaso não é?

PICARETA: Não, não sou.

BODE ACUSADOR: É sim senhor. O senhor está defendendo exatamente a filosofia de vida inventada por ele, vai me dizer que não é ligado a ele? Ah, conta outra! Vou passar a chamá-lo agora de Picareta Ohsawa.

PICARETA: Eu não sou ligado ao Dr. Ohsawa! O que isso tem a ver? Por acaso uma pessoa agora não pode abraçar uma idéia de outra pessoa sem que esteja ligado a esta pessoa? E ainda que eu tivesse alguma ligação com o Dr. Ohsawa, no que isto me impediria de defender a alimentação macrobiótica? Ou o senhor vai querer, por acaso, dizer que só os que podem defender uma idéia são os que não têm, absolutamente, nenhuma ligação (nem sequer de afinidade intelectual) com ela? Saiba que isto é um grande absurdo. Eu não tenho nada com o Dr. Ohsawa e, ainda que tivesse, isto não faria com que a macrobiótica fosse falsa!

BODE ACUSADOR: Picareta Ohsawa, fique calmo. Por que está se justificando tanto? Já posso ver que o senhor é, na verdade, financiado pela indústria do George Ohsawa!

PICARETA: Isto é um ultraje! Eu não sou financiado por ninguém e só estou aqui defendendo o meu ponto de vista por achar que ele é correto. Aliás, eu não tenho nenhuma ligação com o Dr. Ohsawa para além da admiração intelectual pelo trabalho que ele produziu e que é um dos mais importantes para a humanidade recente. Nunca o vi, nunca escrevi-lhe, nunca falei com ele, nem nada. E de onde foi que saiu esta história de "indústria"? Desde quando existe alguma indústria interessada em impôr a alimentação macrobiótica?

BODE ACUSADOR: O senhor, além de ser ligado ao fundador da filosofia macrobiótica, é um intolerante! Pois o senhor quer que todas as pessoas abracem este tipo de alimentação!

PICARETA: Sim, é claro que eu quero que todo mundo abrace esta alimentação, que é muito saudável, muito mais humana e muito melhor para o planeta...

BODE ACUSADOR: E, quem não quiser, que seja exterminado como os judeus dos campos de concentração!

PICARETA: Mas assim já é demais! Eu nunca na minha vida sugeri que quem não fosse VEGAN devesse ser exterminado como os judeus nos campos de concentração, e isto é um absurdo completo. Se eu defendo que não devemos comer animais para evitar a multiplicação da dor nos seres vivos, como é possível que eu, ao mesmo tempo, possa defender que seres humanos sejam mortos??

BODE ACUSADOR: Ué, o senhor é todo contraditório, senhor Picareta Ohsawa. Afinal de contas, o senhor defende a filosofia do George Ohsawa ao mesmo tempo em que diz que ele é um farsante que não merece confiança...

PICARETA: Eu nunca disse isso!

BODE ACUSADOR: Claro que disse, o senhor ficou indignado quando eu disse que o senhor estava ligado a ele. Este tipo de indignação só surge quando nós somos associados a pessoas de vida imoral ou indecente. Ou, no caso, um farsante.

PICARETA: O senhor tem um jeito particular de argumentar! É claro que o Dr. Ohsawa não é um farsante, muito pelo contrário, trata-se de um homem genial responsável por uma das mais importantes descobertas do século, como eu dizia anteriormente, porque a sua filosofia de vida é diretamente responsável por uma multidão de pessoas mais saudáveis e mais empenhadas em eliminar o sofrimento do planeta.

BODE ACUSADOR: A-há! Rasgando-se em elogios assim ao Ohsawa, é óbvio que o senhor está sendo financiado por ele, como eu disse desde o início!

PICARETA: Não estou não!

BODE ACUSADOR: Está sim!

PICARETA: Não estou não!

BODE ACUSADOR: Está sim! E além de estar vendido à indústria macrobiótica japonesa o senhor é um hipócrita, porque não quer que os animais sofram mas não se preocupa nem com os sofrimentos dos vegetais e nem com os sofrimentos dos seres humanos que precisariam se privar de comer as coisas das quais gostam. Daqui para os campos de concentração é um pulo!

PICARETA: Não existe uma indústria macrobiótica japonesa! Além do mais, este negócio do sofrimento não tem nada a ver. Todo mundo sabe que os diversos seres humanos experimentam sofrimentos em níveis diferentes, de acordo com a sua capacidade de conscientização a respeito do mundo ao seu redor. Esta escala hierárquica vai dos que mais têm sentimentos - os animais, incluindo os homens - até os que têm menos sentimentos, como os vegetais e os minerais. Destes últimos os homens podem se utilizar, relativamente, porque tirar umas folhas ou umas frutas não machuca tanto assim o vegetal.

BODE ACUSADOR: Hipocrisia, o senhor acredita em "escala hierárquica" nenhuma. Afinal, o senhor nega a cadeia alimentar, que é uma das escalas hierárquicas mais básicas da natureza. E também não se importa nem um pouco com os seres humanos que não querem passar pelo sofrimento de deixarem de comer o que gostam.

PICARETA: Uma coisa não tem nada a ver com a outra! Uma coisa é a escala de sofrimentos que é evidente, ou por acaso o senhor discorda dela??? Outra coisa completamente diferente é esta mítica "cadeia de alimentação", que outra coisa não é que não uma desordem da natureza brutal que nós, seres humanos, enquanto animais racionais, precisamos eliminar!

BODE ACUSADOR: Mas é exatamente isto o que diz a indústria japonesa da macrobiótica do George Ohsawa, que está financiando o senhor e o senhor não quer admitir! Hipócrita Ohsawa, o senhor é um desonesto mesmo!

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E assim sucessivamente. Com o acúmulo de acusações (esta é a idéia: acumular acusações), ou o interlocutor gasta muito tempo defendendo-se delas (no exemplo acima, perceba que ele pouco ou nada argumentou a favor da sua tese de que a macrobiótica é uma coisa positiva: isto é uma vitória) ou termina por aceitá-las e, assim, é visto diante do público como detentor de um rótulo odioso. Ponto para o Bode Torto em qualquer um dos casos.

Percebam que as acusações a serem buscadas precisam ser direcionadas; não adianta tanto ficar jogando coisas ao acaso, que não tenham nenhuma relação com o assunto. No exemplo, foi citado o Dr. George Ohsawa - fundador da macrobiótica; um pouco de erudição e de conhecimento do objeto discutido é muito útil para tornar os golpes do Bode Acusador mais eficientes. Nada que dois minutos de Google não resolvam.

Algumas regras básicas para otimizar a escolha das acusações são:

- Procurar o estado da questão. Procurar entender, em outros fóruns, do quê pessoas como o seu interlocutor são geralmente acusadas (por exemplo, católicos de "fanáticos inquisidores", muçulmanos de "terroristas", ateus de "imorais arrogantes", gays de "promíscuos depravados", conservadores de "homofóbicos", etc.).

- Se o interlocutor for conhecido, melhor ainda. É possível descobrir alguma coisa da qual ele realmente se envergonhe (por exemplo, no exemplo acima é possível que o vegetariano tenha uma foto em algum álbum de rede social em um churrasco, e aí basta ficar acusando ele de não fazer o que prega; etc.). As pessoas sempre têm um ponto fraco, algo que as irrita e as tira do sério.

- Fazer ilações do tipo "tese defendida - expoente da tese", como no exemplo acima. Se alguém é vegetariano, acuse-o de estar ligado a algum ideólogo do vegetarianismo. Se alguém é americano anti-Obama, acuse-o de estar sendo financiado pelo Tea Party. Se é comunista, pela KGB. É geralmente mais fácil achar acusações para o "grupo mais conhecido" do que para o seu interlocutor, e associá-lo àquele grupo é uma maneira eficaz de multiplicar as possibilidades acusatórias do Bode Acusador. A idéia é abusar do rótulo odioso mesmo.

Esta busca pela acusação perfeita deve estar sempre entre os objetivos principais de um Bode Acusador. As dicas acima naturalmente não são exaustivas, cabendo enorme parte do sucesso deste bode à sua criatividade e desenvoltura no ato da discussão.

Outra coisa interessante é identificar a acusação que mais irrita o interlocutor e insistir nela. Assim ele fica mais tentado a se defender dela, desperdiçando mais do seu tempo e fazendo assim com que a sua picaretagem seja neutralizada com mais eficiência e mínimo esforço de nossa parte. E, com isso, conseguimos transformar a internet em um lugar melhor para todos nós.

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